terça-feira, 5 de agosto de 2008

Parede




Felizarda, nasci num dos pontos mais lindos do litoral do Brasil – e do mundo, segundo alguns amigos estrangeiros -, São Sebastião, costa norte de São Paulo. Por isso cresci cercada pela muralha. De qualquer ponto da cidade eu podia avistá-la. De um lado, se ergue no rumo oeste. De outro, ao longe, na serra de Caraguatatuba. Ao sul, nos caminhos para praias como Maresias, Camburi e Boiçucanga. E a leste está a enorme parede verde de Ilhabela.
A massa inebriante da Mata Atlântica é colírio puro. E o que encanta é se estar na beirada da praia, perto de um mar muito límpido e olhar para trás e ver tamanha diversidade vegetal. Com essa infância privilegiada, não foi difícil me identificar com Blumenau e suas densas florestas urbanas. Tive ainda o privilégio de me instalar no alto de um morro, na última casa da rua, quase no meio da mata, vendo só verde aqui por detrás do meu computador.
Do litoral catarinense eu só conhecia Florianópolis e algumas outras cidades ao sul, como Guarda do Embaú e Imbituba, até Laguna. Mas essa parte mais ao norte da costa, próxima a Blumenau, que fui conhecer após minha mudança, tem uma vegetação muito mais densa do que lá no sul, e em alguns pontos muito semelhante à da minha região natal. A muralha também está aqui, e eu a vejo da minha varanda, numa visão reconfortante porque evoca os cenários da minha infância.
Da primeira vez que peguei a estrada e segui rumo às praias, tudo estava muito bem. Mas, após uma curva, o que se descortinou na minha frente foi um choque tão absurdo, que a sensação que eu tive foi a de ter entrado num filme de ficção científica, naquelas cenas em que o personagem é abduzido e levado para outro planeta.
A visão de Balneário Camboriú é uma cacetada. Você sabe que logo ali está a praia, mas se ergue à sua frente uma massa brutal de edifícios que simplesmente não combina com o que você tinha visto até então. Pode até ser que eu seja sensível demais, mas foi um choque tão tremendo que, além de eu custar a me recuperar, até hoje não tive coragem de pegar o trevo de acesso à cidade e me arriscar a ir a uma praia dali. Apesar de todo mundo falar que “Balneário é tudo”, eu continuo preferindo a muralha verde à de concreto.
*Esta maravilhosa imagem de São Sebastião é do meu amigo-irmão J. Valpereiro, um artista-fotógrafo.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Café com pão


Algo que me faz falta em Blumenau é o “culto ao café” que há em São Paulo. Apesar dos incríveis cafés coloniais, o café – a bebida – é um pouco menosprezado aqui. É quase sempre de coador, e raramente forte. E café expresso bom é uma dificuldade. Sou cafeólatra – será que é assim que se fala? – e mesmo não tomando cafezinho o dia inteiro, preciso de duas boas doses, uma de manhã e outra à tarde. A gente consegue ver aqui várias doçarias e “cafés” simpáticos, mas café bom mesmo não é muito fácil de achar.
Numa recente viagem a São Paulo senti o cheiro gostoso da torra do café na Alameda Lorena, perto do Café Suplicy, que por sua vez me lembrou o cheio da rua da minha avó, em Minas. E pensei que aqui nunca senti isso. Aquele cheiro que entra pela narina e faz você sair louco atrás de uma xícara. Com fumante deve ser assim, né?
As companhias ideais do pretinho, pão de queijo, pão francês e queijo branco, também não são matéria forte por essas bandas. Gosto do pão de queijo do supermercado Angeloni. Mas o pão francês é uma tristeza, nos supermercados e nas padarias. Felizmente achei o de uma padaria cujo nome esqueci (Pão alguma coisa) na Ponta Aguda, logo depois que se passa embaixo da ponte de ferro, no sentido das Itoupavas. Apesar de não ser meu caminho, às vezes faço volta para chegar até ali, só para comprar um pãozinho decente.
O conceito de pão aqui, aliás, é diferente, bem europeu mesmo. O pão preto é super gostoso e bem feito em todo lugar. No supermercado a gente acha vários tipos de pães “coloniais” diferentes, alguns com banha, deliciosos, mas tão pesados e gordurosos que não chegam a secar na torradeira! No supermercado e padarias também se vêem biscoitinhos e bolinhos diferentes, e muitas coisas feitas de fubá de milho e polvilho, ingredientes que acabaram sendo incorporados à cultura local por causa da oferta escassa de trigo quando os primeiros imigrantes chegaram.
Já o queijo branco foi um desafio para minha pobre mãezinha mineira em sua primeira visita. Ela tentou de todo jeito achar um com a frescura e consistência tenra à qual está acostumada, mas acabou desistindo. Simplesmente porque não faz parte da cultura do povo do Sul fazer queijo Minas, lógico. Em compensação, ela achou um pote de nata, vendido como se fosse requeijão mesmo – que eu nunca tinha visto lá em São Paulo e é fabricado por alguns laticínios do Sul – e se deliciou com ela passando no pão.

*Imagem retirada do site da ABIC - Associação Brasileira da Indústria de Café

Pelo estômago 2




Apesar de ter sido criada com carne de porco, angu, couve e torresmo, fui vegetariana convicta por dez anos – o que quase enfartou minha mãe. Mas quando engravidei do meu segundo filho, há três anos, tive uma vontade (desejo?) irresistível de comer frango. E a ave voltou a fazer parte do meu cardápio. Aí, um dia, jantando num restaurante francês bem caro de São Paulo a única opção vegetariana no cardápio era ravióli de ricota com molho de manjericão. Achei um desaforo sentar naquele restaurante tão bacana, daquele chef tão famoso e comer um prato que em qualquer cantina eu comeria. Então arrisquei um confit de pato. Bingo! Só faltei comer de joelhos.
Ainda torço o nariz para os magrets, que são a carne do pato bem vermelha, não gosto. Mas essa quebra de paradigma com o pato serviu para que eu experimentasse de coração aberto os marrecos de Blumenau. O primeiro foi num buffet da Oktoberfest. Hmm... Além do marreco tem repolho roxo, purê, um bolinho parecido com nhoque cujo nome eu me esqueci, purê de maçã e joelho de porco – que minha tradição vegetariana não me permite experimentar também porque eu acho que este e outros tipos de prato são do tempo em que se precisava comer tudo num bicho, e hoje já não carece...
Com todo o respeito, o marreco da Oktober – e outros que experimentei desde que me mudei – estava com gosto de frango véio, os frangos fritos que minha pobre vozinha colocava numa panela, amarrava com um pano de prato e dava pra gente comer debaixo de uma árvore em cima do capô do Opala do meu pai, na viagem interminável de volta de Minas Gerais. Então fiz outra tentativa com o marreco do Abendbrothaus, na Vila Itoupava, super famoso. E o marreco alemão (sem o recheio, of course) se redimiu. Tudo no restaurante é bom. E muito bom. (A língua eu também não experimentei porque é demais...).
Mais uma coisa que me chamou a atenção quando me mudei foi a pizza. Há um pizzaria aqui, bem popularzona, que serve rodízio. Um paraíso para as crianças porque é um rodízio salgado e doce. E serve sabe o que mais? Batata frita, macarrão, nhoque, além de ter um bufê de saladas e sobremesas. A cereja do rodízio, no entanto, é uma saladinha de radicchio com um frango frito crocante, impecável. Outra pizzaria, a Dom Peppone tem uma pizza deliciosa, perfeita para se matar a saudade da pizza paulistana. Com a vantagem de que nesta pizzaria a gente também come outros pratos à la carte e bebe vinhos bem gostosos.
Certamente falta muita coisa para experimentar em Blumenau. Vou contando aos poucos. Se eu já engordei desde que me mudei para cá? Só não engordei mais porque me mudei para uma casa que tem três lances de escada. Senão...

Ah, uma coisa que eu amo e que tem aqui em toda esquina é churro. Nem todos são bons. Mas o mais incrível é notar que as carrocinhas de churro dormem na rua, apenas trancadas, com tudo dentro. E no noutro dia, invariavelmente, estão lá. Pra quem está acostumado com os múltiplos cadeados paulistanos, isso é um espanto...

*Imagem retirada do site www.villagermania.com.br, empresa de Indaial, aqui pertinho, que vende marrecos recheados. Já fiz em casa, fica bem gostoso.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Pelo estômago

Eu sou comilona. Filha de mãe mineira que cozinha muito bem e em cuja mesa é uma ofensa se comer pouco, eu gosto bem de um garfo. Por isso nem eu mesma entendo bem porque demorei tanto para falar da comida de Blumenau.
Meu contato inicial foi na primeira visita que fiz à cidade, em outubro passado. Pra minha felicidade, fiquei hospedada no Hotel Glória, que tem o café colonial mais famoso da região. O café da manhã é uma orgia alimentar. Pães, bolos com todos os sabores, recheios e coberturas, tortas doces e salgadas, uma loucura... Foi ali também que descobri que, felizmente, eu gosto de comer, mas não tenho a alma gorda.
Porque apesar de ter curiosamente experimentado de tudo, no final do terceiro dia de hospedagem eu implorei para o garçom me trazer um singelo café e um pão integral com queijo branco. E só. Eu precisava sentir meu estômago um pouco vazio. Mas na segunda visita, em dezembro, e desde que me mudei, em janeiro, tenho continuado minha exploração no mundo da culinária local.
As tais das cucas (acho que vem de kuchen, bolo em alemão) são um capítulo à parte. Eles fazem um pão de ló muito fofo, muito suave, e colocam por cima uma cobertura de frutas, igualmente delicada, como banana, maçã, morango – a minha preferida – e pêssego. É muuuito bom. O strudel também é incrível, muito bom. Além do Glória, cucas e bolos recheados maravilhosos são os feitos pela padaria Bekendorf (de uma suavidade impressionante, não doces demais) e da Mirna’s Kuchenhaus, bem em frente à linda pracinha de Pomerode. No café da Havan não é nada demais, mas você ganha de brinde a vista do rio Itajaí Açu, que eu já mencionei aqui.
Mas a prova de que Blumenau é antes de tudo uma cidade bem brasileira é a verdadeira devoção local pelo bolo “nega maluca”. Todo aniversário de criança tem que ter e em toda doçaria você encontra. A diferença é que aqui até no supermercado o bolo é muito gostoso (lá em São Paulo bolo de supermercado costuma ser sinônimo de coisa “mais ou menos”). Ah, os salgados são outra história, eu conto depois.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Muita informação

Estive em São Paulo por três dias na semana passada. Sozinha. O que é a glória para uma mãe de dois filhos pequenos e que se dedica a eles em tempo quase integral. Foi o meu prêmio por ser uma mãe muito legal! Poder andar um pouco por minha conta, sem pensar em crianças, escolher o que comer, aonde ir, o que ver, só o que EU quisesse. Escolhi São Paulo para rever velhos amigos, para aplacar um pouco meu lado consumista e para tomar o choque da metrópole.
Na metade do primeiro dia eu já estava esturricada, tamanho o choque. Estava com dor de cabeça, os olhos vermelhos e as pernas doendo, como acontecia logo que me mudei para São Paulo em 98, vinda da minha pacata cidade litorânea de 40 mil habitantes. É muita rua para atravessar, muito sinal em que prestar atenção, muita vitrine, muita gente de quem desviar... Como diz o povo “muderno” de hoje “é muita informação”.
Os cinco meses de Blumenau foram suficientes para que eu voltasse ao meu estado de pureza mental, que o primeiro dia de São Paulo já abalou. Se São Paulo é bom? É óóótimo! Fui ao teatro, vi um monte de novidades e comprei coisas lindas. Mas é bom justamente assim, de vez em quando e com o principal: dinheiro no bolso porque pisar na rua por lá já custa caro.
A moderna tranqüilidade de Blumenau, onde tudo parece ter seu lugar, me deixa mais feliz quando o negócio é escolher um lugar para viver uma rotina. Afirmo sem pestanejar que moro numa cidade de vanguarda, por um monte de motivos que um dia ainda vou explorar melhor. E não é que muita gente aqui acha que aquilo lá é que é vida? Êta mundo bom este, onde tem gosto pra tudo.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A ordem das coisas


“A coragem, o otimismo e o carinho com os filhos são marcas deixadas por Olindina Simas Schreiber, 91 anos. Teve sete filhos, 19 netos, 10 bisnetos e dois trinetos. Procurava sempre se manter bonita. (...) trabalhou na Companhia Hering, teve uma loja e foi professora de escola primária. Morreu sábado, no Hospital Santa Isabel, por insuficiência respiratória”. “O aposentado Delério Bonifácio Maba, 66 anos (... ) tinha cerca de 3 mil chaveiros e mil modelos de relógios de parede e de cabeceira. (...) Domingo sofreu um derrame e morreu enquanto dormia”.
Pedaços de vida de gente comum, como os que transcrevo acima aparecem nos obituários que o Jornal de Santa Catarina, o maior jornal de Blumenau, do grupo RBS, publica todos os dias. Eu, que gosto de visitar cemitérios porque acho que eles contam mais história do que muitos livros, leio sempre o obituário. Para quem também pensa assim, acaba de ser publicado "O Livro das Vidas", que traz 57 obituários de pessoas anônimas escritas no New York Times, e que viraram livro tal a importância dessa seção para o jornal e tamanha a poesia contida nas histórias de vida ali mostradas.
Presto atenção nos relatos publicados no jornal daqui porque imagino, meu Deus, quanta história gente como as Olindinas, Delérios, Hans e Ingelores que envelhecem em Blumenau deixam para trás. Bom é sentir que boa parte dos que estão ali no obituário, a não ser que tenham tido suas vidas excessivamente romantizadas pelos que ficaram e mandam os textos para o jornal, levaram uma vida longa e plena das acres doçuras que povoam nosso cotidiano, mas não servem para ser manchete da revista Caras. Costura, bordado, cuidado com plantas, coleção de chaveiros, participação no baile da terceira idade... (Mas é triste também ver que muita gente morre moça, a maioria de acidente de moto, por motivos que eu já explicitei aqui na primeira postagem do blog, chamada “Autobahn”)
Na mesma página do jornal, em espaços só possíveis numa cidade encantadoramente provinciana, a gente fica sabendo da chegada de Tiagos, Vitórias, Eduardas e Enzos, com seus respectivos pesos e medidas ao nascer, além de conferir fotografias de casais felizes comemorando Bodas de Prata, crianças vestidas de princesas festejando seus cinco ou seis anos, no natural movimento da vida se renovando, nas prosaicas festas que merecemos para romper a rotina.
Juntando os que vão e os que chegam, mais até do que as sisudas análises políticas ou econômicas, é nessa página que mais me demoro. Porque todo dia torço para que os Tiagos e as Eduardas possam, como dona Olindina, viver intensamente a felicidade de seu anonimato, produzir e reproduzir, tendo o privilégio de conhecer os netos de seus netos.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Confissão

O que foi escrito até aqui esconde algo que mudou em mim, visceralmente, desde que vim morar em Blumenau. Esta cidade trouxe à tona uma face feia, reprovável e pecadora da minha personalidade. Eu nunca imaginei que isso fosse acontecer. Mas as circunstâncias me forçaram. E ao mesmo tempo que a mudança transformou minha vida para melhor na maioria dos aspectos, o inferno passou a habitar a minha casa, sorrateiramente, ao despertar esse meu instinto.
Eu desconhecia a minha capacidade de eliminação fria. Porque quando estou pronta para, mais uma vez, fazer sucumbir aquele ser à minha frente, me despojo de qualquer noção de piedade, reprovação. Sou apenas eu e ele. E eu escolho o melhor momento e a melhor forma. É sempre quando meus filhos e meu marido não estão. Eles não precisam saber o que faço. Quando eles chegam, à noite, na mesa de jantar, continuo agindo como se nada tivesse acontecido.
É claro que isso martela na minha cabeça o dia inteiro. Como esquecer quantos já eliminei, e variando o método, que é o que mais me delicia... Balanço entre o pesar por fazer o que faço e a certeza de que ninguém, lá do buraco de onde vieram, sentirá falta deles. Eles são tão insignificantes que se um ou outro chorar, não vai fazer diferença neste mundo onde quem manda é gente como eu.
Será que eu tenho o direito? Como às vezes acho que não, e mais do que isso, não suportaria o julgamento de gente que ainda acredita que o mundo é perfeito, disfarço e não dou a menor pista do que preenche as minhas tardes, quando adentro elegante na escola dos meus filhos, com os dois levados por mim, a matriarca exemplar. As outras mães me cumprimentam e nem sonham quem sou eu na verdade.
Os que passam em frente à minha casa burguesa não imaginam que aqui vive uma assassina. Apenas alguém que fosse um pouco mais atento notaria a principal pista. Das duas trepadeiras que ornam a entrada, apenas uma está inteira. A outra sofre o ataque dos infelizes que passo a vida eliminando. É nisso que Blumenau me transformou. Numa assassina de uma bando de formigas fdp que não param de comer minhas plantas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Moradas


Uma coisa admirável em Blumenau são as casas. No sentido mais literal do adjetivo admirável. Há uma quantidade razoável de prédios de apartamentos, mas a maior parte das pessoas vive mesmo é em casas. Acostumada a conviver com os muros altos da Paulicéia, é incrível ver muros baixos ou grades vazadas que permitem que a gente consiga enxergar jardins, varandas, esquadrias, cortinas.
As pessoas se preocupam em manter os jardins bem arrumados e os canteiros floridos, a grama sempre aparada e em deixar as varandas em ordem. Na Páscoa uma profusão de coelhos e enfeites alusivos à data – mais um traço da herança européia – inunda os bairros numa manifestação coletiva e espontânea. Não deu outra. Em meus primeiros meses na cidade, eu enchi minha casa de coelhos e agora sou super cuidadosa com o jardim, o que não fazia muito parte da minha pauta, apesar de eu gostar de plantas.
Eu adoro andar pelas ruas de Blumenau. Fiz e ainda faço isso bastante porque o meu filho de dois anos tem o anti-ecológico hábito de só dormir com um passeiozinho de carro. Então, contribuindo maciçamente para o efeito-estufa já conheci quase que a cidade inteira, porque me enfio em qualquer rua que me pareça interessante. E quase todas são bonitas e bem cuidadas, independente se o bairro é de maior ou menor poder aquisitivo.
Além de terem moradas descortinadas para a rua, os blumenauenses também olham de dentro para fora. Eles têm o saudável hábito de se sentar nas varandas para... Fazer nada! Não é incrível? As varandas existem e são utilizadas de fato, ao contrário daquelas dos apartamentos das grandes cidades (quando elas existem). As pessoas se sentam nas tardes dos fins de semana e ficam olhando a rua, conversando, vendo os carros e as pessoas passarem. E mais nada. Neste século de doidos em que o tempo tem um sentido meramente utilitário e não se cogita desperdiçá-lo, aqui felizmente há gente que se permite a isso.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Mercado do luxo


Dia 31 de maio foi um dia importante para o comércio de São Paulo. Abriram-se as portas do Shopping Cidade Jardim. Ultramegaimportante centro de compras, com marcas de altíssimo luxo inéditas no Brasil, academia de ginástica, restaurantes finíssimos... Coisa de louco. Daqueles loucos que moram em São Paulo e porque gastam R$ 20 mil numa tarde de compras pensam que estão vivendo.
Na hora em que a Daslu do Shopping paulistano vivia suas primeiras horas de glamour no novo endereço, eu participava entusiasticamente de outra inauguração de ponto comercial, aqui em Blumenau. Misturei-me a uma massa democrática em que cabia desde os moradores dos bairros mais afastados até pais com filhos em colégios caros da cidade, coisa impensável no novo centro de compras paulistano. É esta característica provinciana – no melhor sentido da palavra – de todos terem seu lugar em volta do coreto da praça, que me encanta em Blumenau, e de que eu sentia falta na megalópole.
Mas vamos à nova loja. A cidade tem um “castelinho” copiando as construções germânicas que aparece em quase todo o seu material turístico. O local estava detonado, largado, e foi comprado por uma rede de departamentos aqui de Santa Catarina, chamada Havan. Se na sede, em Brusque, a Havan tem um prédio medonho, com uma réplica da Estátua da Liberdade na entrada, em Blumenau o trabalho feito pela rede foi exemplar.
O castelinho foi totalmente recuperado, deixando a maior parte das características originais intactas. Uma das inovações foi um café cujas mesas ficam sobre a Avenida Beira Rio. Dali se descortina um dos quadros mais lindos que eu já vi na vida, que é o rio Itajaí Açu e suas margens arborizadas.
Ali no terraço lembrei que lá embaixo, na loja, não tinha nenhum exemplar das gravatas Hermès ou das bolsas Furla para comprar, e isso a gente pode encontrar no luxuosíssimo Shopping Cidade Jardim. Mas lembrei também que o rio que margeia – e perfuma – o Shopping é o moribundo Pinheiros. Sob o sol bem amarelo do outono, vendo o Itajaí Açu, tomando um café e comendo uma cuca de coco eu dei, pela milésima vez desde que cheguei, graças a Deus por estar aqui. E reafirmei minha certeza de que luxo é outra coisa.

Mais blumenauês

Mais umas coisinhas que me esqueci sobre as palavras e o sotaque. O uso da segunda pessoa é lindo, só fica feio quando os blumenauenses falam “pra ti saber...”.
Outra coisa interessante é que aqui não se fala tia ou dia nem como no Nordeste, nem como no Sudeste. O Nordeste fala dia e tia com a língua no meio dos dentes; no Sudeste a gente fala “dgia” e “tchia”. E aqui fala-se “dzia” e “tsia”.
Ah, e tem outra palavra coringa. É daí. Qualquer seja a sua afirmação, termine-a com daí. “Vou pegar pra você, daí”. “Você vem me encontrar, daí”. “A gente combina, daí”.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A bunda

“Queix mem’ cons’rtar o p’nal?”
Tico e Teco ficaram alguns milésimos de segundo paralisados antes de começar a trabalhar na minha cabeça. A sorte é que eu tinha comprado a lista de materiais da criançada no começo do ano e lá estava escrito “1 penal”, que depois entendi ser um estojo. Penal é o nome que eles dão aqui. Nome bonito, antigo, poético. Enfim, concordei em consertar o zíper estragado do recipiente para colocar penas, digo, lápis e canetas.
Além do significado de algumas palavras o sotaque do povo blumenauense ainda não é 100% familiar aos meus ouvidos e custo a escandir algumas frases... Passo pela segunda vez na vida por este processo. A primeira foi quando fui morar por seis anos em Juiz de Fora e custei a me acostumar a ouvir “acadimia”, “tumate” e “fugão”, além de descobrir que "envém" era vem: “Lá envém o ônibus!”. Mas assim como aconteceu em Minas, estou adorando tudo isso.
Em sua maioria, as pessoas em Blumenau têm um acento bem parecido com o português de Portugal, chiam como os cariocas, e usam de forma mais poética ainda o tu. Fora o queres, que vira “queix”, é bem bonito ouvir nos supermercados “tens cartão?” e nas lojas “posso pegar, se tu quiseres”. A musicalidade também é curiosa. Os finais de frase são sempre em tom crescente, de uma forma que nós, no Sudeste, só fazemos quando queremos dar ênfase ao que se diz. A frase mais banal, como “ele é grande”, é dita de forma super afirmativa - “ele é grandeeeee” - então a coisa deixa de ser grande e fica enorme! E isso, quase sempre em ritmo acelerado, porque mais uma vez como nossos irmãos lusitanos, aqui se fala bem depressa.
O emprego de algumas palavras me parece ser diferente por causa da tradução direta do alemão. Uma pessoa, ao telefone, não fala “vou aí (onde você está)”, e sim “vou ali”, o que pra mim é estranho, já que ali não é aqui (onde eu estou). Apesar de não falar alemão, se não estou errada, a palavra Da em alemão serve para aí e ali, como o there em inglês. “Vou pedir pra ele” pode significar também “vou perguntar”, o que me parece mais um traço de influência germânica, como se fosse o ask, do inglês.
Me senti mais em casa quando vi que quase todo mundo fala “meu”, exatamente do modo como os paulistas. E é quase todo mundo mesmo, até os mais velhinhos: “Meeeeu!”. O “Cuida!” é a expressão para “Cuidado!”. Este a minha filha já aprendeu. E ela também já solta “podes” e “queres” de vez em quando...
Existe ainda uma palavra multifuncional, cabalística e coringa: lavação. Aqui não existe área de serviço. É lavação. Nem você deixa a roupa na lavanderia pra lavar e passar. É na lavação. Quer deixar o carro limpinho? Aqui não tem lava-rápido. É lavação.
No entanto, foi com um sentimento libertador que descobri que “bunda” por esses lados não tem um sentido tão pejorativo. Sempre procurei, principalmente com meus filhos, falar bumbum porque bunda era mais pesado, afinal. Mas aqui se fala bunda com uma naturalidade incrível! Fiquei feliz por não ter que esconder tanto a bunda em Blumenau.

Do espelho de cada um

Diante do alerta de amigos, fiquei pensando que realmente os textos abaixo podem dar a sensação de que não existe gente feia em Blumenau. Uai, gente feia tem em todo lugar, sô!
Outra dúvida que pode ter ficado no ar é que eu tenha algum pendor nazifascista – toc, toc, toc - e ache que loiros de olhos azuis são seres superiores. Bem, para alguém que, como eu, tem sobrenome Silva e uma mistura danada no sangue... Só se eu fosse ainda mais doida do que eu já sou.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Eu, mulher-gabiru

Com meu 1 metro e 60 de altura costumo me considerar uma mulher de tamanho médio. Não sou gorda nem magra, nem feia nem bonita, com o cabelo castanho e a pele meio amarela que é resultado da mistura de raças. Em Blumenau eu até continuo na média, mas há momentos em que minha suposta mediocridade estética deixa de ser levada ao pé da letra, para me enquadrar entre as muito feias ou baixotas.
Por ter um filha pequena, meu universo particular tem espaço reservado para as Princesas Disney e Barbies Bailarinas, Butterflies, Aladus... E descobri: elas moram aqui em Santa Catarina!
Numa das primeiras vezes em que fui encher o tanque do meu carro e me dirigi ao caixa para pagar com o cartão, quem estava sentada ali era a princesa Gisele, do filme “Encantada”. Assistiu? Não? Então vai lá: http://tiny.cc/KcUG1. Achei que ela ia piscar os olhinhos e cantar “Como ela saaaaaaabe que a amaaaa”, como no filme. Mas ela só perguntou, meio entediada: “Débito ou crédito?”. Na farmácia foi a mesma coisa. A atendente estava abaixada e quando se levantou para o “pois não?” não sei se ela percebeu meu ar estupefato diante do par de olhos mais azuis que eu já tinha visto na vida.
Outro detalhe é o tamanho da mulherada. No supermercado eu às vezes me sinto a mulher-gabiru, como eram chamados os subnutridos nordestinos nos anos 80, que não passavam de 1,40 metro. É curioso que, mesmo tendo morado em São Paulo e cruzado freqüentemente com modelos muito altas e muito bonitas, eu não tinha esta sensação, já que a média balançava mesmo mais pro meu lado.
Algumas das moças enormes são também muito magras. Você vê uma com o uniforme do cartório ou outra atrás do caixa do banco e tem certeza que bastaria umas aulas e uma produçãozinha para estarem em Milão – não é à toa que esse estado tem participação maciça nas passarelas dos Fashion Weeks.
Há ainda um tipo de mulher alta que é realmente enorme. Isso quer dizer que elas são grandes num todo. Por isso é fácil de entender que em boa parte das lojas de roupas de Blumenau – o que eu não tinha visto em lugar nenhum - existe uma seção voltada para os “tamanhos grandes”. Porque, mesmo não sendo gordas, algumas mulheres daqui não caberiam nunca nos ridículos tamanhos-padrão da moda brasileira.
Mesmo me sentindo meio feiosa perto das princesas Disney que encontro, fico contente nas visitas ao supermercado blumenauense. Afinal, é a oportunidade que tenho para me sentir mignon...

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A beleza do lugar

Outro dia David Beckham me parou na rua, pedindo informação. Só que ele tinha um sotaque que não era inglês, era alemão. Falava português muito mal. Tinha uns 20 anos, de uma beleza impressionante. Suas roupas eram surradas e depois que ensinei como ele chegava na rua “Iguazu”, ele entrou num carro também muito velho e foi embora. Era mais um homem dessas paragens que não tem noção da sua beleza.
Isso acontece todo o tempo em Blumenau. Por causa da colonização alemã, a gente vê muitos caras bonitos – e mulheres também, é claro. Como nosso imaginário é povoado pelo clichê hollywoodiano loiro-alto-olhos azuis, eu, mais acostumada com a mistura sudestina, ainda me espanto.
O moço que corta a grama aqui de casa é operário do setor têxtil no período noturno. Perto dos 40 anos, tem o ar cansado de quem trabalha muito, somado à expressão circunspecta trazida pela educação germânica. Mas outro dia ao conversar com ele, fiquei pensando que me lembrava de alguém. Jisuis!, pensei. É o Rutger Hauer nos seus melhores tempos de “Blade Runner”.
No alto do morro onde moro é preciso uma bomba d’água. Ela quebrou. Quem veio consertar foi o Indiana Jones. Veja bem, não o da Caveira de Cristal, mas o da Arca Perdida. De uniforminho azul e óculos na ponta do nariz, juro que achei que cedo ou tarde ele ia pular sobre as pedras do jardim e sair dando chicotada no meu gato. Mas ele apenas protagonizou o episódio inédito “O Conserto da Bomba Enguiçada” e foi embora, despedindo-se polidamente.
O Luke Skywalker – presta atenção, antes do acidente – estava na recepção do hotel em que fiquei num fim de semana desses. O “Jedi” pomerodense se desdobrava entre a entrada do hotel, a reposição de pratos e a limpeza de uma mesa. Muito atencioso e sorridente, o jovenzinho parecia não ter muita noção do tom de azul dos seus olhos.
Bem, com essas referências todas - à exceção do Beckham - já deu pra perceber que eu fui adolescente nos anos 80. Hoje, uma respeitável senhora casada e mãe de família quase quarentona, faço essas observações unicamente em caráter jornalístico.
Mas que os moços são bonitos por aqui, isso são.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Autobahn

Não sei se aqui é um pedaço da Alemanha mesmo. Mas os motoristas pensam que sim. Eles têm certeza que estão numa autobahn, todo tempo, o tempo todo.
Vim de São Paulo certa de que aqui encontraria um trânsito pacífico. É claro que passo muito menos tempo dentro do carro desde que me mudei, mas o stress se assemelha. Não sei se é justamente porque São Paulo não anda, os motoristas lá têm um código tácito. Na medida do possível cedem passagem, sinalizam suas ações e oferecem auxílio. Aqui, cidade tão civilizadamente diferente do resto do país, tentar entrar na pista, mesmo após horas de seta, parece uma tarefa impossível.
A questão velocidade também é uma coisa espantosa. Como correm, meu Deus! E se você anda numa velocidade normal sempre haverá um alucinado colado na sua traseira. Aguarde: ele vai ultrapassar você, meter a mão na buzina e provavelmente berrar algo indecifrável. Como sou mulher - apesar de todos os anos enfrentando com maestria estradas e o trânsito paulistano - a fúria sexista escorre então pelos cantos da boca e pelos olhos vidrados enquanto eles somem adiante.
Ah, a trilha sonora. Impossível você ter a sua própria. Apenas reze para que o carro que vai parar ao lado no sinal tenha um gosto compatível com o seu. Outro dia, vindo de Gaspar, aqui perto, o "pancadão" do carro da frente fazia vibrar o meu. Minha filha, na inocência de seus seis anos disse: "Mamãe, como o moço daquele carro é gentil! Ele deixa a gente escutar a música dele". É, deve ser isso. Como já dizia o profeta: "Gentileza gera gentileza!".