segunda-feira, 23 de junho de 2008

A ordem das coisas


“A coragem, o otimismo e o carinho com os filhos são marcas deixadas por Olindina Simas Schreiber, 91 anos. Teve sete filhos, 19 netos, 10 bisnetos e dois trinetos. Procurava sempre se manter bonita. (...) trabalhou na Companhia Hering, teve uma loja e foi professora de escola primária. Morreu sábado, no Hospital Santa Isabel, por insuficiência respiratória”. “O aposentado Delério Bonifácio Maba, 66 anos (... ) tinha cerca de 3 mil chaveiros e mil modelos de relógios de parede e de cabeceira. (...) Domingo sofreu um derrame e morreu enquanto dormia”.
Pedaços de vida de gente comum, como os que transcrevo acima aparecem nos obituários que o Jornal de Santa Catarina, o maior jornal de Blumenau, do grupo RBS, publica todos os dias. Eu, que gosto de visitar cemitérios porque acho que eles contam mais história do que muitos livros, leio sempre o obituário. Para quem também pensa assim, acaba de ser publicado "O Livro das Vidas", que traz 57 obituários de pessoas anônimas escritas no New York Times, e que viraram livro tal a importância dessa seção para o jornal e tamanha a poesia contida nas histórias de vida ali mostradas.
Presto atenção nos relatos publicados no jornal daqui porque imagino, meu Deus, quanta história gente como as Olindinas, Delérios, Hans e Ingelores que envelhecem em Blumenau deixam para trás. Bom é sentir que boa parte dos que estão ali no obituário, a não ser que tenham tido suas vidas excessivamente romantizadas pelos que ficaram e mandam os textos para o jornal, levaram uma vida longa e plena das acres doçuras que povoam nosso cotidiano, mas não servem para ser manchete da revista Caras. Costura, bordado, cuidado com plantas, coleção de chaveiros, participação no baile da terceira idade... (Mas é triste também ver que muita gente morre moça, a maioria de acidente de moto, por motivos que eu já explicitei aqui na primeira postagem do blog, chamada “Autobahn”)
Na mesma página do jornal, em espaços só possíveis numa cidade encantadoramente provinciana, a gente fica sabendo da chegada de Tiagos, Vitórias, Eduardas e Enzos, com seus respectivos pesos e medidas ao nascer, além de conferir fotografias de casais felizes comemorando Bodas de Prata, crianças vestidas de princesas festejando seus cinco ou seis anos, no natural movimento da vida se renovando, nas prosaicas festas que merecemos para romper a rotina.
Juntando os que vão e os que chegam, mais até do que as sisudas análises políticas ou econômicas, é nessa página que mais me demoro. Porque todo dia torço para que os Tiagos e as Eduardas possam, como dona Olindina, viver intensamente a felicidade de seu anonimato, produzir e reproduzir, tendo o privilégio de conhecer os netos de seus netos.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Confissão

O que foi escrito até aqui esconde algo que mudou em mim, visceralmente, desde que vim morar em Blumenau. Esta cidade trouxe à tona uma face feia, reprovável e pecadora da minha personalidade. Eu nunca imaginei que isso fosse acontecer. Mas as circunstâncias me forçaram. E ao mesmo tempo que a mudança transformou minha vida para melhor na maioria dos aspectos, o inferno passou a habitar a minha casa, sorrateiramente, ao despertar esse meu instinto.
Eu desconhecia a minha capacidade de eliminação fria. Porque quando estou pronta para, mais uma vez, fazer sucumbir aquele ser à minha frente, me despojo de qualquer noção de piedade, reprovação. Sou apenas eu e ele. E eu escolho o melhor momento e a melhor forma. É sempre quando meus filhos e meu marido não estão. Eles não precisam saber o que faço. Quando eles chegam, à noite, na mesa de jantar, continuo agindo como se nada tivesse acontecido.
É claro que isso martela na minha cabeça o dia inteiro. Como esquecer quantos já eliminei, e variando o método, que é o que mais me delicia... Balanço entre o pesar por fazer o que faço e a certeza de que ninguém, lá do buraco de onde vieram, sentirá falta deles. Eles são tão insignificantes que se um ou outro chorar, não vai fazer diferença neste mundo onde quem manda é gente como eu.
Será que eu tenho o direito? Como às vezes acho que não, e mais do que isso, não suportaria o julgamento de gente que ainda acredita que o mundo é perfeito, disfarço e não dou a menor pista do que preenche as minhas tardes, quando adentro elegante na escola dos meus filhos, com os dois levados por mim, a matriarca exemplar. As outras mães me cumprimentam e nem sonham quem sou eu na verdade.
Os que passam em frente à minha casa burguesa não imaginam que aqui vive uma assassina. Apenas alguém que fosse um pouco mais atento notaria a principal pista. Das duas trepadeiras que ornam a entrada, apenas uma está inteira. A outra sofre o ataque dos infelizes que passo a vida eliminando. É nisso que Blumenau me transformou. Numa assassina de uma bando de formigas fdp que não param de comer minhas plantas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Moradas


Uma coisa admirável em Blumenau são as casas. No sentido mais literal do adjetivo admirável. Há uma quantidade razoável de prédios de apartamentos, mas a maior parte das pessoas vive mesmo é em casas. Acostumada a conviver com os muros altos da Paulicéia, é incrível ver muros baixos ou grades vazadas que permitem que a gente consiga enxergar jardins, varandas, esquadrias, cortinas.
As pessoas se preocupam em manter os jardins bem arrumados e os canteiros floridos, a grama sempre aparada e em deixar as varandas em ordem. Na Páscoa uma profusão de coelhos e enfeites alusivos à data – mais um traço da herança européia – inunda os bairros numa manifestação coletiva e espontânea. Não deu outra. Em meus primeiros meses na cidade, eu enchi minha casa de coelhos e agora sou super cuidadosa com o jardim, o que não fazia muito parte da minha pauta, apesar de eu gostar de plantas.
Eu adoro andar pelas ruas de Blumenau. Fiz e ainda faço isso bastante porque o meu filho de dois anos tem o anti-ecológico hábito de só dormir com um passeiozinho de carro. Então, contribuindo maciçamente para o efeito-estufa já conheci quase que a cidade inteira, porque me enfio em qualquer rua que me pareça interessante. E quase todas são bonitas e bem cuidadas, independente se o bairro é de maior ou menor poder aquisitivo.
Além de terem moradas descortinadas para a rua, os blumenauenses também olham de dentro para fora. Eles têm o saudável hábito de se sentar nas varandas para... Fazer nada! Não é incrível? As varandas existem e são utilizadas de fato, ao contrário daquelas dos apartamentos das grandes cidades (quando elas existem). As pessoas se sentam nas tardes dos fins de semana e ficam olhando a rua, conversando, vendo os carros e as pessoas passarem. E mais nada. Neste século de doidos em que o tempo tem um sentido meramente utilitário e não se cogita desperdiçá-lo, aqui felizmente há gente que se permite a isso.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Mercado do luxo


Dia 31 de maio foi um dia importante para o comércio de São Paulo. Abriram-se as portas do Shopping Cidade Jardim. Ultramegaimportante centro de compras, com marcas de altíssimo luxo inéditas no Brasil, academia de ginástica, restaurantes finíssimos... Coisa de louco. Daqueles loucos que moram em São Paulo e porque gastam R$ 20 mil numa tarde de compras pensam que estão vivendo.
Na hora em que a Daslu do Shopping paulistano vivia suas primeiras horas de glamour no novo endereço, eu participava entusiasticamente de outra inauguração de ponto comercial, aqui em Blumenau. Misturei-me a uma massa democrática em que cabia desde os moradores dos bairros mais afastados até pais com filhos em colégios caros da cidade, coisa impensável no novo centro de compras paulistano. É esta característica provinciana – no melhor sentido da palavra – de todos terem seu lugar em volta do coreto da praça, que me encanta em Blumenau, e de que eu sentia falta na megalópole.
Mas vamos à nova loja. A cidade tem um “castelinho” copiando as construções germânicas que aparece em quase todo o seu material turístico. O local estava detonado, largado, e foi comprado por uma rede de departamentos aqui de Santa Catarina, chamada Havan. Se na sede, em Brusque, a Havan tem um prédio medonho, com uma réplica da Estátua da Liberdade na entrada, em Blumenau o trabalho feito pela rede foi exemplar.
O castelinho foi totalmente recuperado, deixando a maior parte das características originais intactas. Uma das inovações foi um café cujas mesas ficam sobre a Avenida Beira Rio. Dali se descortina um dos quadros mais lindos que eu já vi na vida, que é o rio Itajaí Açu e suas margens arborizadas.
Ali no terraço lembrei que lá embaixo, na loja, não tinha nenhum exemplar das gravatas Hermès ou das bolsas Furla para comprar, e isso a gente pode encontrar no luxuosíssimo Shopping Cidade Jardim. Mas lembrei também que o rio que margeia – e perfuma – o Shopping é o moribundo Pinheiros. Sob o sol bem amarelo do outono, vendo o Itajaí Açu, tomando um café e comendo uma cuca de coco eu dei, pela milésima vez desde que cheguei, graças a Deus por estar aqui. E reafirmei minha certeza de que luxo é outra coisa.

Mais blumenauês

Mais umas coisinhas que me esqueci sobre as palavras e o sotaque. O uso da segunda pessoa é lindo, só fica feio quando os blumenauenses falam “pra ti saber...”.
Outra coisa interessante é que aqui não se fala tia ou dia nem como no Nordeste, nem como no Sudeste. O Nordeste fala dia e tia com a língua no meio dos dentes; no Sudeste a gente fala “dgia” e “tchia”. E aqui fala-se “dzia” e “tsia”.
Ah, e tem outra palavra coringa. É daí. Qualquer seja a sua afirmação, termine-a com daí. “Vou pegar pra você, daí”. “Você vem me encontrar, daí”. “A gente combina, daí”.