domingo, 1 de agosto de 2010

O baile da colheita


Eu sempre soube que sair do conforto trazia dores e delícias. Deixar São Paulo nos privou de algumas coisas – além de família e amigos queridos – das quais eventualmente sentimos falta. Mas de vez em quando vivo em Santa Catarina experiências que, se tivesse continuado confortavelmente instalada na nossa vida paulistana, nem sonharia em passar.

Na noite do sábado, 31 de julho, entramos no carro e fomos até o Baile do Colono no Clube do Warnow, na cidade de Indaial, vizinha aqui de Blumenau. O Warnow (Fárnof) é uma comunidade que ainda concentra – a exemplo de vários bairros na região – muitos descendentes de alemães, com a peculiaridade de manter construções e costumes bem tradicionais. O Baile do Colono é um deles. Apesar de ter ouvido falar e ter ansiado por conferir de perto, eu realmente não estava preparada para tudo.

Já na entrada do clube e no imenso salão de baile de assoalho de madeira estavam pendurados por todo o forro, vigas e pilastras, vários produtos que o trabalho rural pode proporcionar. Frutas, legumes, folhas, embutidos, enormes raízes de mandioca, cuidadosa e harmonicamente dispostos, enfeitando o ambiente.

Esperando o começo da festa.

Chegamos imediatamente antes do início das músicas, a ponto de eu poder observar a ansiedade de quem circundava a pista, aguardando os primeiros acordes. Tinha gente de todas as idades e estava bem claro que aquele era um evento muito aguardado. Com a pista vazia, pude ver também os ornamentos fixos do salão, um dos inúmeros clubes tradicionais de caça e tiro fundados no século XIX quando os imigrantes alemães chegaram à região. Por isso, nas paredes estão os campeões de tiro de cada ano, desde mil oitocentos e tal, além dos alvos coloridos com pássaros, ainda com os furos dos tiros e o nome do respectivo “Rei do Pássaro”, título almejadíssimo pelos praticantes de tiro das agremiações.

Os alvos de pássaros, com as marcas de tiro, enfeitam o salão.


Veja as datas e tente ler os sobrenomes...

Pra quem não está familiarizado, pode parecer o extremo do politicamente incorreto um grupo que se organiza em torno da prática de tiro. Mas foi desta forma que surgiu a maioria dos clubes aqui no Vale do Itajaí e, assim como o do Warnow, os que são preservados guardam uma beleza extrema e paradoxal em suas histórias que misturam tiros, alvos, danças e música. Clicando aqui você fica sabendo um pouco mais da história da Sociedade do Warnow: http://migre.me/11tj5

O bailão a mil, com a "feira" ainda pendurada no teto.

Quando a banda começou a tocar, mais surpresas para nós, forasteiros. Foi a primeira vez na vida em que dancei num baile até de madrugada sem ouvir uma música sequer em inglês. O repertório variava dos bailados gaúchos, bem populares por aqui, até música sertaneja nova e caipira antiga (“Baile na roça, meu bem se dança assim...”), passando por algumas canções tradicionais alemãs e o “zicke zacke hoy hoy hoy” que a gente ouve na Oktoberfest. A pista tem uma lógica: os pares – formados muitas vezes por duplas de mulheres que não se importam se não são tiradas para dançar – circundam no sentido anti-horário e não existe “música lenta”, só “animada” ou “animadíssima”.

Quem não dança, senta nas mesas na lateral e bebe cerveja ou refrigerante. Magras enjoadas e urbanóides não podem ir porque Coca zero não tem, só “normal”. Afinal, as alvas e esguias descendentes germânicas não estão nem aí pro açúcar que se recusa a se acumular nos magérrimos quadris delas, e as restantes, acima do peso, priorizam outras coisas na vida e tampouco parecem se importar com os padrões que só quem acompanha a São Paulo Fashion Week adota.

Aliás, o baile do Warnow deveria entrar no calendário os olheiros das agências paulistanas. É de nos deixar boaquiabertos a perfeição do rosto de algumas moças. Eu fui com um sapato bem baixinho porque queria fotografar e acompanhar cada momento do baile sem nada me apertando. E rodando na pista a toda hora eu era ultrapassada pela mulherada com seus brilhantes olhos azuis e dois palmos acima da minha modesta altura.

Enquanto a música rolava sem parar, alguns afoitos tentavam “colher” a feira antes da hora. Os seguranças presentes não perdiam tempo e davam um aperto no atrevido. Então, de madrugada, com muitas damas já de pés descalços rodando no salão, o momento tão esperado. “Três, dois, um, podem começar a colheita”. A turba pula, sobe nos ombros dos amigos, e salve-se quem puder. Depois de muita gritaria e risada, salsichões, repolhos e laranjas se acumulam nas mesas e parte do supermercado da semana está garantido.

Três, dois, um, já!


Quem colhe mais, leva mais.


O resultado da nossa colheita.

Perto do fim do baile, na hora de matar a fome, mais surpresa. Anexo ao salão de baile funciona a cozinha do clube, com legítimas “omas” (vovós) preparando pastéis, espetinhos de frango e o famoso heringsbrot: uma fatia de pão colonial encimada de fatias de ovos cozidos e sardinha marinada, mais tradicional impossível. Ah, pra beber? Café com leite bem alemão, ou seja, muito café com um pingo de leite.


As responsáveis pela cozinha do clube do Warnow.


O heringsbrot.


Três da manhã: pastel, heringsbrot e café com leite.

Nem esta longa descrição nem as fotos que estão aqui são capazes de retratar fielmente a experiência. Por isso, ano que vem, final de julho, começo de agosto, onde quer que eu esteja, vou tentar me agendar pra repetir a feira mais divertida, autêntica e original que eu já fiz na vida. Se você quiser, venha porque vale a pena.